5 de fevereiro de 2011

O gato que morreu ouvindo Pink Floyd

I

Era dor, era descanso, era sofrimento, mais um momento.
Ele estava deitado e quando eu chegara
Nem tinha percebido que estava ali.
Por ironia da vida ele morreu ouvindo "Dogs".
Essa reflexão veio depois. Quando aconteceu
Só tive tempo de ficar parado sem entender.
A morte. A sorte. O ainda existir.

Não foi algo simples de presenciar
Não que tivéssemos ligação aparente.
Ele só estava naquele local. E eu também.
Isso pode ser considerado uma ligação?

A vida se extinguiu. E não foi a minha.
Eu continuei. Isso já era o suficiente.
O inacreditável? Seu último suspiro.
Em um galpão abafado perto do inferno
Todos sentem calor, todos sentem a dor
Daquele lugar empesteado de almas.

Ele não queria comer, não queria água ou leite.
Não queria saber se o que rodeava era almas ou gente.
Não importar viver, morrer ou tentar distinguir.
Não tinha graça levantar, sofrer e existir.

Sem saber, passei ao lado daquele gato
Ele levantou a cabeça, como reverencia.
Ou foi uma espécie de reação espontânea?
Um susto com a minha presença? Não sei dizer.
De certo ele me olhou. Eu tentei ignorar e não consegui.
Naquele momento, o universo estava entre nós.
Era só um gato e um humano.
Um gato mais humano que eu.
Um humano que sofria tanto quanto o gato.

Ele abaixou a cabeça de forma inexata.
Talvez aquela tivesse sido sua última olhada.
E o que me machuca é que sua última lembrança sou eu.
Não que eu seja ruim ou algo parecido.
Mas ele merecia algo melhor, meus olhos não eram puros
Mas de alguma forma inexplicável, aquilo tudo me tocou.
Aquele momento me purificou
Aquela morte me amaldiçoou
Mesmo que essa palavra pareça terrível.

Não fiz parte do seu adeus corpóreo depois.
Evitei olhá-lo. Evitei tocá-lo.
Já tínhamos nos olhado.
Já tínhamos nos tocado.
E foi muito mais forte que algum toque físico.

Aquele gato está nos meus olhos.
Aquela dor em meu ser.
Eu sou ele e sempre quis ser.
Deitar em um canto de escombro de guerra
Morrer de forma justa e honrosa.
Olhar para um humano e lhe dar esperança.
Fé na sua vida, mesmo que a minha tenha que se extinguir.
Trazer a paz para uma alma, mesmo que tenha que sair do corpo.
Olhar, suspirar e abaixar a cabeça.
Apoiar apenas pelo bem. Querer o bem. Fazer o bem.

Não tento muito entender os motivos.
Ele apenas estava ali. E eu também.
Aquela era a maior ligação que poderia pedir.
De alguma forma ele deu a vida pra me fazer refletir.
E eu fiz parte do seu último suspiro.
Seus últimos momentos nesse inferno.

O universo que produzimos consumiu toda dor
Produziu um vazio inesperado.
Uma mágica sensação
De que nunca entenderemos o que somos
Como somos e qual é a razão de sermos?
A mágica sensação de que não somos os maiores
Melhores, mais poderosos e fortes.
É tudo uma questão de ser.
E quando somos, podemos escolher caminhos.
Quando o gato me olhou, ele pareceu-me dizer
Escolha o do amor.


II

- O que é a realidade?
- Realidade é a realidade física.
- Então a realidade existe.
- Não.
- Então a realidade é.
- Não.
- Então, o que é a realidade?
- É a realidade física, segundo Einstein.
- E as outras realidades? E as realidades que eu produzo, que você produz, que nós produzimos. A realidade é o que pensamos.
- Não. Existe a realidade física?
- Mas a minha realidade é diferente da sua.
- Quando você deixa de existir, a realidade desaparece?
- Sim... Não. Não sei. A minha realidade desaparece. Mas a realidade do mundo não.
- Exato. A realidade física.
- Mas o mundo é o que eu penso que ele é. A realidade somos nós que fazemos.
- Não. Esse é o destino.
- Esse também fazemos.

III

- Sua realidade é diferente da minha. Você vê coisas que eu não vejo, você ouve coisas que eu não ouço, você sente coisas que eu não sinto. Eu não sei de nada.
- Você sabe. Todos sabem.
- Eu sei que todos estamos loucos e eu não consigo mais distinguir a diferença do que é real ou não.

2 comentários:

  1. Muito bom.
    As coisas que nos fazem refletir nunca deveriam ser esquecidas. Nem todas as outras realidades.
    :*

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  2. Sensacional! Tanto o texto quanto a bela escolha do nome (fala aqui um Pink Floydiano) foram fantásticas. ^^

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